Wednesday, February 07, 2007

PREMIERE - entrevista compl. PARTE 2

2:: Filmar a ausência


Em boa verdade, não existe em “Body Rice” uma narrativa legível, explícita. Não há uma ponta de moralismo, de análise. A câmara limita-se a acompanhar as personagens, a mostrá-las. Os diálogos reduzem-se ao mínimo (na sua maioria em germânico), com personagens, também elas, desligadas do meio onde circulam, elipticamente, à imagem de zombies. “Personagens no limite de não serem personagens”, já que o que interessava mesmo a Hugo Vieira da Silva era explorar os limites: “até onde se podia chegar, até onde se podia aguentar uma narrativa, com outros modos de trabalhar personagens que não fosse pelo diálogo ou pelo habitual esquema de montagem puramente cinematográfico.”O realizador encontrou assim a sua forma de cinema contemporâneo: “miscigenada com outras formas artísticas.” Ou seja, as artes plásticas, a performance, a dança contemporânea, terreno a partir de onde quis criar um território muito mais fluído, importando outras formas de pensar e trabalhar, um pouco emprestadas de outras artes. “Eu tenho uma dificuldade enorme em cortar quando há uma performance de um actor, é uma coisa para mim total e inteira que tenho imensos pruridos em limitar.” E em muitos casos, percebe-se, Vieira da Silva não cortou – como na longa sequência em que uma das raparigas brinca com um pequeno robot automatizado, num registo de dualidade homem vs. máquina. Não cortou ainda, por exemplo, quando outra rapariga se entretém a pontapear um peixe fora de água que agoniza (e ele adverte para os mais sensíveis que nada de mal aconteceu ao peixe posteriormente devolvido ao lago com vida).Vamos chamar a isto um “triângulo amoroso”, definição, aliás, assaz subjectiva. Um triângulo amargurado, seco e implosivo, composto por duas raparigas alemãs, uma loura e outra morena, Katrin (Sylta Wegmann) e Julia (Alice Dwyer). Os mesmo olhares de lince ferido, as almas dilaceradas, acossadas e divagantes. O terceiro elemento, um rapaz chamado Pedro (Luís Guerra), é português, mas a nacionalidade pouco importa, pois o que predomina é o comum léxico da inadaptação, o mutismo como ordem universal. Um silêncio insustentável, mesmo quando temos filas de colunas de som com o volume no máximo, a animar raves de musica trance e tecno em baldios poeirentos.À primeira vista, a tentação é nomear isto de “angústia”. Hugo Vieira da Silva discorda: “Eu não chamo angústia, chamo ausência. A angústia traz uma coisa que tem mais a ver com o romantismo e aqui a ausência tem mais a ver com um espaço vazio, em branco, porque aquele território pode ser a nossa mente e o nosso corpo. O que as personagens procuram durante todo o filme, assim como as pessoas em geral, é expressar os seus desejos, quaisquer que sejam. Simplesmente, as minhas personagens expressam esses desejos de uma forma um bocado transvertida em relação ao que seria convencional, ou até de uma forma sexualizada, violenta, ausente. Essas expressões são pulsões que para mim também têm um sentido de vida. E por vezes, parece que estão completamente ausentes ou que não vivem. Eu acho que elas vivem absolutamente.”Ausência, evidentemente. Uma ausência dilacerada, marcada por corpos, movendo-se como num bailado ou numa performance viva (ou morta-viva?) de musical negro e pós-punk, devidamente sonorizado por temas de bandas como Siouxsie & Banshees ou os “industriais” Eisterzunde Neubaten. “O que me interessa na adolescência é, por exemplo, a forma como estes ouvem música profundamente incomodativa. Ou música com um sentido político, que põe coisas em causa, por esta não ser convencional. A adolescência tem essa força e aderiu a uma coisa que não está sancionada, estabelecida”, refere Vieira da Silva. Só que a par do punk, temos em “Body Rice” o tecno, o trance e as raves que Katrin, Julia e Pedro acabam por frequentar no seio da “natureza” inóspita do Alentejo. A relação entre um gênero e outro acaba por ser natural: “o tecno alemão, e em especial o de Berlim, foi trazido pelas pessoas que vinham da Alemanha para o Alentejo. Tinha uma influência muito grande do punk, porque era um tecno alternativo, muito relacionado com a queda do Muro de Berlim, questões de ocupação (squats), situações muito incomodativas também, digamos, de afirmação de outras formas de estar e de viver.” E aqui, Hugo Vieira da Silva volta à questão inicial. “Porque há uma coisa que sempre me seduziu: como é que os alemães largavam esse mundo e iam para outro território que era totalmente o inverso do sítio de onde viviam?”

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