Tuesday, February 06, 2007

Revista Obscena

Texto publicado no numero 1 revista OBSCENA
Corpo indiferente
Tiago Bartolomeu Costa



Um carro percorre as estradas de terra batida esculpidas na paisagem. O pó acumula-se no vidro e denuncia a aridez daquele território que é o Alentejo mas podia ser qualquer outro lugar de ninguém. Body Rice, a primeira longa-metragem do realizador português Hugo Vieira da Silva (Porto, 1974), atravessa uma planície deserta numa contemplação adormecida e desistente. Um modo de olhar aquela terra como se tudo e nada dependessem dela. No início, ainda o vidro do carro não deixou perceber onde estamos, uma voz masculina pergunta: “É como imaginaste?”. E ouve-se de uma rapariga: “Não imaginei nada”. Body Rice é sobre isso mesmo. A incapacidade de previsão, a demissão de uma responsabilidade, um deixar estar e deixar ser sem noção de futuro.
A legenda inicial contextualiza, fugazmente, o tempo e a acção. Durante os anos 80 jovens alemães eram enviados para o Alentejo ao abrigo de um programa de reinserção social. Miúdos problemáticos, com pesadas heranças familiares, que eram deixados ao cuidado destes projectos controlados pela igreja protestante. Retirados das suas famílias e enviados para outro país – não só Portugal, aqui por se respirarem ventos pós-revolucionários, mas também América Latina e Europa de Leste –, o programa acreditava que a extracção do mal devia ser feita a partir da raiz. Logo, a deslocação tinha contornos de limpeza emocional. A maior parte dos responsáveis pelos jovens não possuíam particular formação para o fazerem e, no triângulo Aljezur-Santa Marta-Odemira, encontravam-se punks, protestantes, ex-prisioneiros e terroristas do exército da República Federal da Alemanha. Um ambiente pesado e quase paralelo à realidade nacional, cujo contacto com a população local vivia mais de uma ocupação que de uma partilha de espaço. O programa, que ainda hoje existe, sustentava-se em teorias obscuras devedoras de um pensamento neo-reaccionário muito em voga nos anos 70. E com o passar dos anos foram-lhe sendo apontados casos de abuso de menores, fugas e mortes. É este universo, particularmente ambíguo, que se capta num filme quase mudo, ou onde as palavras são conscientes de uma finita inutilidade.
Se as palavras são parcas, os olhares vagos e os movimentos tensos, passa pelo filme, e é isso que importa registar, um trabalho em torno do corpo, com a inscrição no espaço, o confronto com o outro, e o abandono e superação da consciência a darem o mote para uma reflexão sobre possibilidades de suspensão. O filme, se suspende o olhar nos corpos, fá-lo porque estes trabalham a partir de mecanismos, dinâmicas e pressupostos coreográficos bastante evidentes. Ou evidentes para quem quiser ver na fixação de movimentos (porque ficção) uma proposta de combinação entre a bidimensionalidade do cinema e a tridimensionalidade da dança. É que o filme entra por um território onde é o corpo que comanda o destino da (eventual) personagem. Deixamos de tratar de personagens estruturadas para observar derivas. Da narrativa para a performance, desta para o espaço, deste para o plano fixo.
Hugo Vieira da Silva registou o modo de actuação e comportamento destes corpos a partir do método de Composição em Tempo Real, desenvolvido pelo coreógrafo João Fiadeiro onde o corpo existe ao serviço de um processo criativo, no qual se pervertem constantemente as regras de criação. As sequências que entram pelas festas de trance, planando sobre a agitada e aparentemente descontrolada movimentação suada daquelas pessoas, registam a forma como as possibilidades de envolvimento e clímax são suspensas. Cada gesto esconde um outro e põe em causa a experimentação. Arrisca um movimento sem memória ao mesmo tempo que acumula “fugas para a frente”. Exprime, nesse escape, a perda de noção de racionalidade, verticalidade e de limite. E ultrapassa a mera disposição num espaço concentrado. Espaço temporal e espaço físico.
Razão pela qual, se sentimos que ao filme falta uma maior contextualização histórico-político-social – ouvimos uma breve notícia sobre o primeiro conflito no Golfo e, pela banda sonora, percebemos que as feridas abertas pela queda do Muro de Berlim não estão completamente saradas –, também compreendemos porque se opta por uma focalização naqueles corpos, eles sim, descontextualizados. É a única hipótese de ordem. O comportamento que exibem, com provas de afecto não uns pelos outros mas em relação a um brinquedo robotizado descoberto numa lixeira, é incapaz, por exemplo, de aceitar a irracionalidade dos animais, e por isso são pontapeados ou ignorados. As figuras – todas, desde as raparigas que se arrastam nos hotéis, ao amigo português (Luís Guerra a mostrar porque é a revelação da dança dos últimos anos), e mesmo o epiléptico que opõe a transcendência provocada pela música electrónica ao descontrolo nervoso da doença –, acusam um mal estar, um sentimento de rejeição e um sentido de ausência que advém da paisagem pálida que lhes condiciona o movimento.
Por isso, Body Rice (de título tão enigmático quanto frágil é a composição de uma vagem de arroz) limita-se a olhar para eles. A deixar-se estar ali. Hugo Vieira da Silva força a concentração naqueles corpos, dessacralizados, híbridos e ressacados, não lhes exigindo uma tomada de posição. Não querendo ler neles um discurso político de resistência nem de desistência. Nessa posição, dir-se-ia que incompreensivelmente amoral na ausência de moral dos noutros, há quem leia presunção, vazio, redundância, inabilidade, desfoque, ausência de ideias ou retórica.
Mas, na verdade, se tudo isso pode ser lido no filme, também se pode tentar olhar para este filme-estado de espírito perguntando como nos podemos relacionar com a consciência. Que lugar é o do corpo numa paisagem, num contexto, face a um futuro condenado? Como agir, comportar-se, relacionar? O filme não propõe alternativas nem organiza as várias histórias que por ali se cruzam. Deixa que a câmara siga os corpos, como numa longa noite de festa. Como se não houvesse amanhã. Porque, como diz uma delas, ninguém se sente. É tudo uma espécie de ausência. É tudo masoquistamente ausente.


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