PUBLICO- Y texto de Inês Nadais
12/1/2007
O "freak" é chique?
O tecno, os cães, os charros, o Alentejo a céu aberto (embora o céu não lhe interesse: interessa-lhe o pó, a terra, a lama), as "raves", o abandono, os "piercings", as "roulottes", a anarquia, a agricultura biológica: por momentos, pensámos que "Body Rice", a primeira longa-metragem de ficção de Hugo Vieira da Silva, era um filme sobre "freaks" (ah, o "freak": é chique!). O primeiro filme sobre "freaks" - com todos os "gadgets" - do cinema português. Ele acha que não, e nós temos que aceitar: não foi isso que ele quis ser o primeiro a filmar, e de resto não sabe onde estão (não sabe que estão onde mais se espera: nos festivais de "world music" e de trance, nas feiras de agricultura biológica, nas ruas da Baixa, a fazer malabarismo). Não é o primeiro filme sobre "freaks", ok (Roger that!). Mas há quem diga que, por ter ido a certos sítios pouco frequentados, é o primeiro filme (extra! extra!) do resto da vida do cinema português.
Como se tivesse chegado de outro planeta, diz Paulo Cunha e Silva, ex-director do Instituto das Artes: "É um filme de ruptura com o cinema português: não pela circunstância de o cinema português ter uma identidade muito fixada, mas sobretudo por se aventurar em territórios e disciplinas que não estão habituados a ser convocados por ele. Nesse sentido, é um objecto um bocadinho extraterrestre". Extraterrestre ao ponto de não parecer deste mundo, o mundo do cinema: "Apesar de ser ainda profundamente narrativo, socorre-se de uma lógica não-cinematográfica muito interessante. Está próximo da performance e das artes plásticas, mas não deixa de ser cinema. O Hugo conseguiu encontrar um dispositivo curioso que lhe permite trazer para dentro do cinema outras coisas - e, ao mesmo tempo, evocar memórias da história do cinema evitando colocar-se sob a influência delas. Não pude deixar de me lembrar de filmes como "Deserto Vermelho", do [Michelangelo] Antonioni, "O Sétimo Selo", do [Ingmar] Bergman, ou mesmo o "Land of the Dead", do [George Romero] - mas senti que eram evocações, não influências".
Ele, Hugo, falará em Lisandro Alonso, Tsai Ming-liang - coprodutores de um cinema que a pós-modernidade tornou possível. "O meu cinema só podia ter acontecido agora. Dantes não havia esta liberdade de saltar do cinema para as artes visuais, para a performance", argumenta. Tinha vontade de fazer isso - e tinha vontade de um território como aquele, o Alentejo do final dos anos 80: "Aquilo era uma espécie de último deserto europeu onde conviviam famílias bio, terroristas da Rote Armee Fraktion [o grupo Baader-Meinhof], produtores de "cannabis", punks, ecologistas e, a partir de certa altura, caravanas de "travellers", autênticos "soundsystems" ambulantes com essa ideia de uma democracia sonora: podemos estacionar numa propriedade privada e fazer uma "rave". Esse confronto dos cabos e dos amplificadores com a seara alentejana era uma coisa bizarra mas fortíssima".
Hugo Vieira da Silva andou por lá nessa altura e andou por lá agora, para filmar "Body Rice". E diz que o que as pessoas vinham fazer ao Alentejo - esses alemães que chegavam para mudar de vida, por vontade própria ou por deliberação do sistema - é parecido com o que ele foi lá fazer. "As pessoas tinham o impulso de virar as coisas de pernas para o ar, como se quisessem andar com as mãos no chão. Vinham da Alemanha, de um país onde - tardiamente, em relação à Europa do Maio de 68 -, as pessoas estavam a experimentar coisas: novas maneiras de habitar o território e de lidar com a propriedade, por exemplo, com o movimento "squatter". Por ser um caixote do lixo da Alemanha, Berlim era um sítio onde se podiam fazer múltiplas inscrições porque não havia ortodoxias. E o Alentejo também era assim, permeável: as pessoas que chegavam tinham essa vontade de experimentar, esse desejo quase de perdição, as que já lá estavam eram indiferentes àquilo, e essa indiferença era sedutora porque autorizava tudo". Isso está no filme, mas o filme não é sobre isso (como não é sobre "freaks", mas adiante). "Não quis fazer um "case-study" do Alentejo - até porque aquele abandono pode acontecer nas cidades. Viver em apartamentos significa isso: estarmos apartados uns dos outros. Quis virar as coisas de pernas para o ar, como esses alemães: pôr em causa a gramática do cinema, tal como aquelas pessoas puseram em causa a gramática da vida em sociedade. Também foi esse o trabalho que fiz com os actores: um trabalho de desaprendizagem", explica.
Warholiano. Mas isso foi depois: antes tinha tentado fazer um documentário. "Foi um erro, mas aprendi imenso com ele. Na altura estava a estudar cinema e queria reter aquilo tudo. Mas estava tão dentro daquele contexto que, a dada altura, percebi que não podia ser um "voyeur" desses miúdos, não podia denunciá-los [fala desses miúdos problemáticos que os tribunais alemães retiravam às famílias e que vinham para cá "reabilitar-se", do "comércio mais ou menos ilegal" que se alimentava disso, das histórias "incríveis" que a Stern e o Expresso publicaram acerca do assunto e resume: não quer ir por aí]. Converti os miúdos em co-autores do guião e avancei para uma ficção, que me pôs a uma distância de segurança e a salvo de trair essas pessoas e de me trair a mim próprio", diz. Evitar as pessoas também foi uma maneira de estar mais perto delas: "O filme emergiu do contacto com elas, mas não da intimidade delas". E emergiu, para voltarmos ao início, dessa vontade de fazer cinema com outros materiais. "Há um lado performativo evidente no filme - que não tem nada a ver com a coreografia, porque a coreografia é residual no filme. Interessam-me as ideias sobre o corpo - há ali um corpo que perde a convenção, que perde a hierarquia e os cães estão lá não como "gadgets" de uma cultura mas como prolongamento desses corpos que podem rastejar como cães, dormir como cães - e as metodologias que vêm da performance. É nisso que o meu cinema é performativo: não me interessa ir para o "set" improvisar e apanhar coisas com a câmara, interessa-me esse lado laboratorial antes do filme. A performance é aquele momento, o filme é outra coisa: há um efeito modificador na imagem e na montagem. Interessa-me trabalhar no cinema, ainda que pondo o cinema em causa".
Além da relação que estabelece com a performance, Paulo Cunha e Silva considera que há "outra novidade" em "Body Rice": "O argumento é um contra-argumento, um pretexto para um trabalho de dissecação que o realizador promove à flor da pele dos corpos. O filme não cede a essa tentação, que parecia evidente de ir ao fundo das personagens e das suas motivações, limita-se a utilizar os corpos delas como elemento narrativo". Nisso, nota, "Body Rice" é superficial, mas no sentido warholiano: "Os corpos interessam-lhe enquanto lugares de inscrição. É uma dissecação epidérmica. Não é um filme psicológico, sociológico, moral. Há uma não-topografia no filme, que tanto se aplica ao lugar onde se passa a acção como aos corpos, que funcionam como autómatos, zombies. O Hugo faz uma espécie de cinema-ecstasy: um cinema de uma alienação tal que lhe permite trabalhar os corpos como entidades que se deslocam de forma absurda, sem destino e sem objectivos".
É aí que o sociólogo Bragança de Miranda, da Universidade Nova, encontra o gesto mais radical do filme: "O exercício de construir uma história sem personagens, ou com personagens sonâmbulas, como diria Kleist: essa estratégia de tomar os corpos pela superfície é uma decisão radical que o realizador consegue manter ao longo das duas horas. Sendo um filme que apela ao corpo logo desde o título, o que está em causa não é a construção do corpo de uma personagem mas de um corpo colectivo". Que não é o corpo "freak" porque, havendo trabalho de campo, não há "nenhuma vontade de fazer etnografia ou de descrever comunidades existentes"; o que há, sublinha Bragança de Miranda, é a vontade de fazer emergir qualquer coisa a partir de três zombies e de "reflectir profundamente sobre as relações humanas" num contexto em que a brutalidade da paisagem e, simultaneamente, a sua indiferença total "fazem com que o trabalho que tem de ser feito se faça": "Se a paisagem fosse demasiado acolhedora ou hostil, as personagens teriam de se confrontar com o exterior. Assim só têm de se confrontar consigo próprias. É nisso que o filme é superior: introduz pequenas diferenças dentro dos lugares-comuns de uma certa sociologia da juventude de hoje, e ainda bem, porque já há muita gente a fazer essa sociologia".
O tecno, os cães, os charros, o Alentejo a céu aberto (embora o céu não lhe interesse: interessa-lhe o pó, a terra, a lama), as "raves", o abandono, os "piercings", as "roulottes", a anarquia e a agricultura biológica estão lá para fazer a identificação de um território. Mas não há nisso sociologia (quando muito taxinomia, diz Paulo Cunha e Silva) nem celebração (de um momento, de uma indumentária, do tecno, dos anos 80). Isso sim, diz Hugo Vieira da Silva, seria ficar à superfície.
Inês Nadais (PÚBLICO)
O "freak" é chique?
O tecno, os cães, os charros, o Alentejo a céu aberto (embora o céu não lhe interesse: interessa-lhe o pó, a terra, a lama), as "raves", o abandono, os "piercings", as "roulottes", a anarquia, a agricultura biológica: por momentos, pensámos que "Body Rice", a primeira longa-metragem de ficção de Hugo Vieira da Silva, era um filme sobre "freaks" (ah, o "freak": é chique!). O primeiro filme sobre "freaks" - com todos os "gadgets" - do cinema português. Ele acha que não, e nós temos que aceitar: não foi isso que ele quis ser o primeiro a filmar, e de resto não sabe onde estão (não sabe que estão onde mais se espera: nos festivais de "world music" e de trance, nas feiras de agricultura biológica, nas ruas da Baixa, a fazer malabarismo). Não é o primeiro filme sobre "freaks", ok (Roger that!). Mas há quem diga que, por ter ido a certos sítios pouco frequentados, é o primeiro filme (extra! extra!) do resto da vida do cinema português.
Como se tivesse chegado de outro planeta, diz Paulo Cunha e Silva, ex-director do Instituto das Artes: "É um filme de ruptura com o cinema português: não pela circunstância de o cinema português ter uma identidade muito fixada, mas sobretudo por se aventurar em territórios e disciplinas que não estão habituados a ser convocados por ele. Nesse sentido, é um objecto um bocadinho extraterrestre". Extraterrestre ao ponto de não parecer deste mundo, o mundo do cinema: "Apesar de ser ainda profundamente narrativo, socorre-se de uma lógica não-cinematográfica muito interessante. Está próximo da performance e das artes plásticas, mas não deixa de ser cinema. O Hugo conseguiu encontrar um dispositivo curioso que lhe permite trazer para dentro do cinema outras coisas - e, ao mesmo tempo, evocar memórias da história do cinema evitando colocar-se sob a influência delas. Não pude deixar de me lembrar de filmes como "Deserto Vermelho", do [Michelangelo] Antonioni, "O Sétimo Selo", do [Ingmar] Bergman, ou mesmo o "Land of the Dead", do [George Romero] - mas senti que eram evocações, não influências".
Ele, Hugo, falará em Lisandro Alonso, Tsai Ming-liang - coprodutores de um cinema que a pós-modernidade tornou possível. "O meu cinema só podia ter acontecido agora. Dantes não havia esta liberdade de saltar do cinema para as artes visuais, para a performance", argumenta. Tinha vontade de fazer isso - e tinha vontade de um território como aquele, o Alentejo do final dos anos 80: "Aquilo era uma espécie de último deserto europeu onde conviviam famílias bio, terroristas da Rote Armee Fraktion [o grupo Baader-Meinhof], produtores de "cannabis", punks, ecologistas e, a partir de certa altura, caravanas de "travellers", autênticos "soundsystems" ambulantes com essa ideia de uma democracia sonora: podemos estacionar numa propriedade privada e fazer uma "rave". Esse confronto dos cabos e dos amplificadores com a seara alentejana era uma coisa bizarra mas fortíssima".
Hugo Vieira da Silva andou por lá nessa altura e andou por lá agora, para filmar "Body Rice". E diz que o que as pessoas vinham fazer ao Alentejo - esses alemães que chegavam para mudar de vida, por vontade própria ou por deliberação do sistema - é parecido com o que ele foi lá fazer. "As pessoas tinham o impulso de virar as coisas de pernas para o ar, como se quisessem andar com as mãos no chão. Vinham da Alemanha, de um país onde - tardiamente, em relação à Europa do Maio de 68 -, as pessoas estavam a experimentar coisas: novas maneiras de habitar o território e de lidar com a propriedade, por exemplo, com o movimento "squatter". Por ser um caixote do lixo da Alemanha, Berlim era um sítio onde se podiam fazer múltiplas inscrições porque não havia ortodoxias. E o Alentejo também era assim, permeável: as pessoas que chegavam tinham essa vontade de experimentar, esse desejo quase de perdição, as que já lá estavam eram indiferentes àquilo, e essa indiferença era sedutora porque autorizava tudo". Isso está no filme, mas o filme não é sobre isso (como não é sobre "freaks", mas adiante). "Não quis fazer um "case-study" do Alentejo - até porque aquele abandono pode acontecer nas cidades. Viver em apartamentos significa isso: estarmos apartados uns dos outros. Quis virar as coisas de pernas para o ar, como esses alemães: pôr em causa a gramática do cinema, tal como aquelas pessoas puseram em causa a gramática da vida em sociedade. Também foi esse o trabalho que fiz com os actores: um trabalho de desaprendizagem", explica.
Warholiano. Mas isso foi depois: antes tinha tentado fazer um documentário. "Foi um erro, mas aprendi imenso com ele. Na altura estava a estudar cinema e queria reter aquilo tudo. Mas estava tão dentro daquele contexto que, a dada altura, percebi que não podia ser um "voyeur" desses miúdos, não podia denunciá-los [fala desses miúdos problemáticos que os tribunais alemães retiravam às famílias e que vinham para cá "reabilitar-se", do "comércio mais ou menos ilegal" que se alimentava disso, das histórias "incríveis" que a Stern e o Expresso publicaram acerca do assunto e resume: não quer ir por aí]. Converti os miúdos em co-autores do guião e avancei para uma ficção, que me pôs a uma distância de segurança e a salvo de trair essas pessoas e de me trair a mim próprio", diz. Evitar as pessoas também foi uma maneira de estar mais perto delas: "O filme emergiu do contacto com elas, mas não da intimidade delas". E emergiu, para voltarmos ao início, dessa vontade de fazer cinema com outros materiais. "Há um lado performativo evidente no filme - que não tem nada a ver com a coreografia, porque a coreografia é residual no filme. Interessam-me as ideias sobre o corpo - há ali um corpo que perde a convenção, que perde a hierarquia e os cães estão lá não como "gadgets" de uma cultura mas como prolongamento desses corpos que podem rastejar como cães, dormir como cães - e as metodologias que vêm da performance. É nisso que o meu cinema é performativo: não me interessa ir para o "set" improvisar e apanhar coisas com a câmara, interessa-me esse lado laboratorial antes do filme. A performance é aquele momento, o filme é outra coisa: há um efeito modificador na imagem e na montagem. Interessa-me trabalhar no cinema, ainda que pondo o cinema em causa".
Além da relação que estabelece com a performance, Paulo Cunha e Silva considera que há "outra novidade" em "Body Rice": "O argumento é um contra-argumento, um pretexto para um trabalho de dissecação que o realizador promove à flor da pele dos corpos. O filme não cede a essa tentação, que parecia evidente de ir ao fundo das personagens e das suas motivações, limita-se a utilizar os corpos delas como elemento narrativo". Nisso, nota, "Body Rice" é superficial, mas no sentido warholiano: "Os corpos interessam-lhe enquanto lugares de inscrição. É uma dissecação epidérmica. Não é um filme psicológico, sociológico, moral. Há uma não-topografia no filme, que tanto se aplica ao lugar onde se passa a acção como aos corpos, que funcionam como autómatos, zombies. O Hugo faz uma espécie de cinema-ecstasy: um cinema de uma alienação tal que lhe permite trabalhar os corpos como entidades que se deslocam de forma absurda, sem destino e sem objectivos".
É aí que o sociólogo Bragança de Miranda, da Universidade Nova, encontra o gesto mais radical do filme: "O exercício de construir uma história sem personagens, ou com personagens sonâmbulas, como diria Kleist: essa estratégia de tomar os corpos pela superfície é uma decisão radical que o realizador consegue manter ao longo das duas horas. Sendo um filme que apela ao corpo logo desde o título, o que está em causa não é a construção do corpo de uma personagem mas de um corpo colectivo". Que não é o corpo "freak" porque, havendo trabalho de campo, não há "nenhuma vontade de fazer etnografia ou de descrever comunidades existentes"; o que há, sublinha Bragança de Miranda, é a vontade de fazer emergir qualquer coisa a partir de três zombies e de "reflectir profundamente sobre as relações humanas" num contexto em que a brutalidade da paisagem e, simultaneamente, a sua indiferença total "fazem com que o trabalho que tem de ser feito se faça": "Se a paisagem fosse demasiado acolhedora ou hostil, as personagens teriam de se confrontar com o exterior. Assim só têm de se confrontar consigo próprias. É nisso que o filme é superior: introduz pequenas diferenças dentro dos lugares-comuns de uma certa sociologia da juventude de hoje, e ainda bem, porque já há muita gente a fazer essa sociologia".
O tecno, os cães, os charros, o Alentejo a céu aberto (embora o céu não lhe interesse: interessa-lhe o pó, a terra, a lama), as "raves", o abandono, os "piercings", as "roulottes", a anarquia e a agricultura biológica estão lá para fazer a identificação de um território. Mas não há nisso sociologia (quando muito taxinomia, diz Paulo Cunha e Silva) nem celebração (de um momento, de uma indumentária, do tecno, dos anos 80). Isso sim, diz Hugo Vieira da Silva, seria ficar à superfície.
Inês Nadais (PÚBLICO)
0 Comments:
Post a Comment
<< Home