Friday, February 23, 2007

João Lopes

Este texto foi publicado na revista «6ª»/Diário de Notícias (12 Jan. 2006), com o título ‘Fragmentos de modernidade’.
O actual contexto do cinema português é absolutamente trágico. E isso nada tem a ver com o facto de considerarmos que os filmes são “bons” ou “maus” (nunca estaremos de acordo e, creio, não é por isso que vem grande mal ao mundo). Tem a ver, isso sim, com o apagamento da própria ideia de um cinema português no interior do mercado – e, um dia destes, com a sua metódica exclusão do espaço da própria produção. Vivemos, de facto, um tempo de diluição das audiências específicas de cinema. Na prática, dir-se-ia que apenas temos fenómenos televisivos que, pontualmente, se conseguem “transferir” para os territórios do cinema, destruindo por dentro a sua especificidade. Neste contexto, os equívocos só se poderão acentuar através de um filme como «Body Rice», primeira longa-metragem de ficção de Hugo Vieira da Silva (depois de alguns trabalhos na área documental). Em primeiro lugar, porque «Body Rice» é um intransigente e coerente objecto de cinema que não pactua com as exigências “narrativas” ou os códigos de “verosimilhança” impostos pelas leis televisivas dominantes – trata-se de encenar, como uma espécie de drama suspenso e ritualizado, a vida de um grupo de jovens alemães enviados, nos anos 80, para o Alentejo, ao abrigo de projectos experimentais de reintegração social. Depois, porque «Body Rice» recusa submeter-se a qualquer uma das provas de “portugalidade” que, tantas vezes, de modo tão demagógico, se exigem aos filmes portugueses – o filme, embora enraízado em factos concretos, tende para uma abstracção paradoxal que, singularmente, o aproxima do conceito teatral e plástico da performance. Enfim, porque «Body Rice» possui uma lógica de modernidade que, face ao imperialismo formal da telenovela e dos reality shows, só pode transformá-lo num objecto entregue à sua serena condição selvagem. De onde vem essa lógica? Da aposta na criação de um universo de representação que esteja para além das regras e dispositivos clássicos do “retrato psicológico”, sobretudo dessa “psicologia” que reduz personagens e situações a padrões deterministas e renováveis. Não creio que, ao longo das suas duas horas de duração, o filme consiga manter em todos os seus fragmentos a mesma intensidade dramática e a mesma subtileza formal. Mas os seus “desequilíbrios” são também a prova real dos seus riscos. Aliás, a opção por uma estrutura fragmentária traduz, não a vontade de apropriação do real em “cenas”, mas sim a afirmação de um desejo de narrativa que não se limita a cumprir programas mais ou menos académicos. Poderá perguntar-se: mas então o que há de “português” em tudo isto? Na verdade, muito, já que somos levados a redefinir alguns aspectos do mapa imaginário do nosso país (por exemplo, recusando qualquer imagem pitoresca do Alentejo). Ao mesmo tempo, «Body Rice» é um objecto que tende para uma estranha e envolvente neutralidade geográfica, como se o nosso mundo contemporâneo se fragmentasse, também ele, num mapa cujas coordenadas não conseguem estabilizar. Por tudo isso, este é também um filme de perturbante actualidade simbólica.

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