BODY RICE - Diário de Noticías
10.01.07
"BODY RICE" entre Berlim e o Alentejo
Body Rice o título é um enigma que o próprio autor não quer decifrar. "Um corpo de arroz é delicado, fragmentário, não se consegue compor. Um corpo que se extravasa e se põe em causa. Um pós-corpo."
Body Rice, a primeira longa-metragem de Hugo Vieira da Silva, de 32 anos, estreia-se amanhã. O filme surge num triângulo: entre o Porto natal, Berlim, a cidade escolhida como lar, e o Alentejo de férias, aventuras e ligações emocionais. Um triângulo unido pela transgressão. "No final dos anos 80 o Porto era uma cidade pequena onde chegavam poucas coisas, mas, por outro lado, havia um ambiente alternativo", conta o realizador. "Lembro-me de ter visto muito cedo um concerto de Nick Cave no Rivoli ou música experimental nos Frigoríficos do Bacalhau." Talvez houvesse uma proximidade cultural com Berlim, para onde se mudou no início de 90. "Quando eu cheguei ainda havia resquícios da divisão", recorda Hugo. "Era uma cidade de renegados, aqueles que eram pagos para ir para lá, a massa trabalhadora, e depois uma quantidade imensa de punks. Era um meio contra-societário. Ali explodiam as vanguardas, as experiências, a cultura alternativa."
Quantos alemães deixaram casa e emprego, mudaram de vida e instalaram-se num monte da planície alentejana, sem luz eléctrica? Os hippies de sandálias encontraram naquele fim do mundo o seu espaço de isolamento. Niguém se mete na vida de ninguém. "Um território com zonas escondidas, onde se passavam coisas bizarras, incomodativas."
É nesse espaço de liberdade, algures, no final dos anos 80, que se situa Body Rice. Ao que parece, alguns jovens delinquentes alemães foram enviados para o Alentejo integrados num projecto de reinserção social. Esta informação, dada por uma legenda inicial, vale apenas como ponto de partida para o filme. A Hugo Vieira da Silva, apesar do esforço de reconstituição histórica (nos penteados, roupas, carros, no ambiente, na música em vinil dos Joy Division, Einstuerzende Neubauten e X-Mal Deutschland), não interessava documentar "o projecto", investigar os seus resultados ou questionar os seus métodos. "O projecto" é só pretexto para filmar corpos com diferentes vontades: "ali encontramos três camadas de pessoas, as que vieram porque quiseram, as que vieram obrigadas e as que estão lá porque ficaram, por inércia, que são os alentejanos. Interessa-me este movimento volitivo, do desejo de ir, de alterar a vida. Interessa-me o facto de haver pessoas que vivem como querem, mesmo que seja de uma forma diferente. Não me interessa nada fazer juízos de valor sobre isso."
No filme, estas vontades expressam-se em corpos - mais do que em personagens ou em narrativas. Corpos que se arrastam, pés que mal saem do chão. Corpos que se agitam, desconjuntados, em raves a céu aberto. Corpos que consomem cigarros, um a seguir ao outro, e que caem para o lado de cansaço. No elenco predominantemente alemão, destaca-se o corpo do bailarino português Luís Guerra, "energia em estado puro", lado visível de um processo de trabalho que esteve afinal muito mais próximo da dança do que do cinema, com pesquisa de movimentos mais do que de personagens. As artes contaminam-se com prazer. Até porque Hugo Vieira da Silva não se sente realizador a tempo inteiro. "Poderia escrever, fazer fotografia ou ser coreógrafo com o mesmo à-vontade com que faço cinema e nem sequer descarto essas hipóteses", confessa.
Cinema de poucas palavras e diálogos parcos, Body Rice é um filme-performance, que vive num "território intermédio" entre o dito e o não- dito, entre a representação e a não-representação. "Não é preciso saber tudo sobre as personagens. As explicações estão diluídas, a narrativa aparece num nível residual. Há até momentos em que a narrativa é suspensa para dar lugar a situações performativas, que têm um valor em si mesmo." No limiar do perceptível, como o autor reconhece: "Isto é cinema mas quero saber até podemos ir." Escultura de bagos de arroz.
"BODY RICE" entre Berlim e o Alentejo
Body Rice o título é um enigma que o próprio autor não quer decifrar. "Um corpo de arroz é delicado, fragmentário, não se consegue compor. Um corpo que se extravasa e se põe em causa. Um pós-corpo."
Body Rice, a primeira longa-metragem de Hugo Vieira da Silva, de 32 anos, estreia-se amanhã. O filme surge num triângulo: entre o Porto natal, Berlim, a cidade escolhida como lar, e o Alentejo de férias, aventuras e ligações emocionais. Um triângulo unido pela transgressão. "No final dos anos 80 o Porto era uma cidade pequena onde chegavam poucas coisas, mas, por outro lado, havia um ambiente alternativo", conta o realizador. "Lembro-me de ter visto muito cedo um concerto de Nick Cave no Rivoli ou música experimental nos Frigoríficos do Bacalhau." Talvez houvesse uma proximidade cultural com Berlim, para onde se mudou no início de 90. "Quando eu cheguei ainda havia resquícios da divisão", recorda Hugo. "Era uma cidade de renegados, aqueles que eram pagos para ir para lá, a massa trabalhadora, e depois uma quantidade imensa de punks. Era um meio contra-societário. Ali explodiam as vanguardas, as experiências, a cultura alternativa."
Quantos alemães deixaram casa e emprego, mudaram de vida e instalaram-se num monte da planície alentejana, sem luz eléctrica? Os hippies de sandálias encontraram naquele fim do mundo o seu espaço de isolamento. Niguém se mete na vida de ninguém. "Um território com zonas escondidas, onde se passavam coisas bizarras, incomodativas."
É nesse espaço de liberdade, algures, no final dos anos 80, que se situa Body Rice. Ao que parece, alguns jovens delinquentes alemães foram enviados para o Alentejo integrados num projecto de reinserção social. Esta informação, dada por uma legenda inicial, vale apenas como ponto de partida para o filme. A Hugo Vieira da Silva, apesar do esforço de reconstituição histórica (nos penteados, roupas, carros, no ambiente, na música em vinil dos Joy Division, Einstuerzende Neubauten e X-Mal Deutschland), não interessava documentar "o projecto", investigar os seus resultados ou questionar os seus métodos. "O projecto" é só pretexto para filmar corpos com diferentes vontades: "ali encontramos três camadas de pessoas, as que vieram porque quiseram, as que vieram obrigadas e as que estão lá porque ficaram, por inércia, que são os alentejanos. Interessa-me este movimento volitivo, do desejo de ir, de alterar a vida. Interessa-me o facto de haver pessoas que vivem como querem, mesmo que seja de uma forma diferente. Não me interessa nada fazer juízos de valor sobre isso."
No filme, estas vontades expressam-se em corpos - mais do que em personagens ou em narrativas. Corpos que se arrastam, pés que mal saem do chão. Corpos que se agitam, desconjuntados, em raves a céu aberto. Corpos que consomem cigarros, um a seguir ao outro, e que caem para o lado de cansaço. No elenco predominantemente alemão, destaca-se o corpo do bailarino português Luís Guerra, "energia em estado puro", lado visível de um processo de trabalho que esteve afinal muito mais próximo da dança do que do cinema, com pesquisa de movimentos mais do que de personagens. As artes contaminam-se com prazer. Até porque Hugo Vieira da Silva não se sente realizador a tempo inteiro. "Poderia escrever, fazer fotografia ou ser coreógrafo com o mesmo à-vontade com que faço cinema e nem sequer descarto essas hipóteses", confessa.
Cinema de poucas palavras e diálogos parcos, Body Rice é um filme-performance, que vive num "território intermédio" entre o dito e o não- dito, entre a representação e a não-representação. "Não é preciso saber tudo sobre as personagens. As explicações estão diluídas, a narrativa aparece num nível residual. Há até momentos em que a narrativa é suspensa para dar lugar a situações performativas, que têm um valor em si mesmo." No limiar do perceptível, como o autor reconhece: "Isto é cinema mas quero saber até podemos ir." Escultura de bagos de arroz.
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